Auto da Barca do Inferno


Auto da Barca do Inferno é um auto que nos diz que, após a morte, vamos parar a um rio que havemos de atravessar.
Gil Vicente inspirou-se na lenda de Caronte, da antiguidade clássica. Na mitologia grega, Caronte é o barqueiro do Hades, que carrega as almas dos recém-mortos sobre as águas dos rios Estige e Aqueronte, que dividiam o mundo dos vivos do mundo dos mortos. Uma moeda para pagá-lo pelo trajeto, geralmente um óbolo era por vezes colocado dentro ou sobre a boca dos cadáveres, de acordo com a tradição funerária da Grécia Antiga.
           Gil Vicente, neste auto substituiu Caronte por dois barqueiros (Diabo e Anjo) e o destino final (Infernos) pelo Inferno ou Paraíso.
         Gil Vicente, ao criticar os costumes, hábitos e vícios da sociedade, queria transmitir uma moral a toda a sociedade; pretendia que toda a sociedade, ao ver a peça, se risse, mas ,em simultâneo, criticava os '' podres '' da sociedade daquele tempo.
 
Estrutura
       O auto não tem uma estrutura definida, não estando dividido em atos ou cenas, por isso para facilitar a sua leitura divide-se o auto em cenas à maneira clássica, de cada vez que entra uma nova personagem.

 
       Personagens
       As personagens desta obra são divididas em dois grupos: as personagens alegóricas e as personagens–tipo.

No primeiro grupo inserem-se o Anjo e o Diabo, representando respetivamente o Bem e o Mal, o Céu e o Inferno. Ao longo de toda a obra estas personagens são como que os «juízes» do julgamento das almas, tendo em conta os seus pecados e vida terrena.

No segundo grupo inserem-se todas as restantes personagens do Auto, nomeadamente o Fidalgo, o Onzeneiro, o Sapateiro, o Parvo (Joane), o Frade, a Alcoviteira, o Judeu, o Corregedor e o Procurador e os Quatro Cavaleiros.

Fazendo uma análise das personagens, cada uma representa uma classe social, ou uma determinada profissão ou mesmo um credo. À medida que estas personagens vão surgindo vemos que todas trazem elementos simbólicos, que representam a sua vida terrena e demonstram que não têm qualquer arrependimento dos seus pecados.

 
       Humor
       Surgem ao longo do auto três tipos de cómico: o de carácter, o de situação e o de linguagem.
       O cómico de carácter é aquele que é demonstrado pela personalidade da personagem, de que é exemplo o Parvo, que devido à sua pobreza de espírito não mede as suas palavras, não podendo ser responsabilizado pelos seus erros.
       O cómico de situação é o criado à volta de certa situação, de que é bom exemplo a cena do Fidalgo, em que este é gozado pelo Diabo, e o seu orgulho é pisado.
       Por fim, o cómico de linguagem é aquele que é proferido por certa personagem, de que são bons exemplos as falas do Diabo.


Argumento
      Este auto considerado por Gil Vicente como sendo um auto de moralidade (Peça de carácter didático-moral onde as personagens encarnam vícios ou virtudes com o objetivo de moralizar a sociedade) inicia com uma dedicatória à Rainha D. Leonor (presença do mecenatismo), recorrendo a captatio benevolentiae (Expressão da retórica latina que significa literalmente “conquista da benevolência”, muito difundida em todas as literaturas , quando um escritor quer ganhar a simpatia de alguém, interpelando-o no sentido de receber louvor e solidariedade para a causa que está a ser defendida).
       Feito o elogio à Rainha, Gil Vicente apresenta o argumento da peça: quando morremos (“no ponto que acabamos de espirar”), as nossas almas dirigem-se a um rio, que tem de ser atravessado para atingirmos o nosso destino final (Inferno ou Paraíso). No cais, para atravessar o rio, encontram-se dois barcos com os respetivos barqueiros, um deles passa para o paraíso e o outro para o inferno.

 
O primeiro a chegar é um fidalgo, a seguir: um onzeneiro, um parvo, um sapateiro, um frade, uma alcoviteira, um judeu, um juiz, um procurador, um enforcado e quatro cavaleiros.
       O seu percurso em cena é praticamente idêntico em quase todas as personagens. Um a um dirigem-se à barca do Diabo, carregando com eles os seus pecados (signos não verbais ou símbolos cénicos). Perguntam para onde vai a barca, mas ao saber que vai para o inferno ficam apavorados e dizem-se dignos do Céu. Aproximam-se, então, do Anjo, que os condena ao inferno pelos seus pecados.
       O Fidalgo, o Onzeneiro, o Sapateiro, o Frade (e sua amante), a Alcoviteira (Brísida Vaz) o Judeu, o Corregedor (juiz), o Procurador e o Enforcado são todos condenados ao inferno pelos seus pecados. Apenas o Parvo é absolvido pelo Anjo. Os Cavaleiros nem sequer são acusados, pois deram a vida a lutar pela Igreja.

 

    FIDALGO
       O primeiro a embarcar é um Fidalgo que vem acompanhado por um Pajem, que lhe leva o manto e uma cadeira. O Diabo, mal vê o Fidalgo, diz-lhe para entrar na sua barca. Este dirige a palavra ao Diabo, perguntando-lhe para onde ia aquela barca. O Diabo responde que o seu destino era o Inferno. O Fidalgo resolve então ser irónico e diz que as roupas do Diabo pareciam de uma mulher e que sua barca era horrível. O Diabo não gostou da provocação e disse-lhe que aquela barca era a ideal para tão nobre senhor. O Fidalgo, admirado, diz ao Diabo que deixou quem rezasse por ele, portanto, o inferno não será a sua paragem, mas acaba por saber que o seu pai também já encontrara abrigo naquela barca.
       O Fidalgo tenta entrar noutra barca e, por isso, resolve dirigir-se à barca do Anjo. Começa por perguntar ao Anjo, para onde é a viagem e que aquela é a barca que procura, mas é impedido de entrar, devido à sua tirania, pois aquela barca era demasiado pequena para tão grande fidalgo, ou seja, não havia ali espaço para todas os pecados que cometera em vida. O Fidalgo demonstra não querer perceber tais verdades e começa a elogiar o Anjo. Mas o Anjo nem o quer ouvir.

Assim, o Fidalgo, desolado, vai para a barca do Inferno. Porém, e antes disso, pede ao Diabo que o deixe tornar a ver a sua amada, que se queria matar por ele. O Diabo diz-lhe que a mulher que ele tanto amava o enganava e que tudo que ela lhe escrevia era mentira Também a sua esposa dava já graças a Deus por ele ter morrido, o melhor era, portanto, embarcar logo, pois ainda viria mais gente. O Diabo manda o Pajem, que estava junto ao Fidalgo, ir embora, pois ainda não era sua hora.
 

Tipo: Nobreza (representa os seus vícios, tirania, vaidade, arrogância e presunção)
               Referência ao pai de Don Anrique porque é uma denuncia social, porque também o pai do Fidalgo já tinha entrado na Barca do Inferno, isto é, toda a classe nobre tinha os mesmos pecados

 Adereços que o caracterizam:
       - pajem: desprezo pelos mais pobres
       - manto: vaidoso
       - cadeira: julgava-se importante e poderoso
 

Argumentos de Defesa:
Argumentos de acusação:
- Barca do Inferno é desagradável (“cortiço”)
- tem alguém na Terra a rezar por ele
- é “fidalgo de solar” e por isso deve entrar na barca do Céu
- é nobre e importante
- ter levado uma vida de prazeres, sem se importar com ninguém
- ter sido tirano para com o povo
- ser muito vaidoso
- desprezava o povo

 Momentos psicológicos da personagem:
       - ao princípio o Fidalgo está sereno e seguro que irá para o Paraíso.
       - dirige-se à barca do Anjo, arrogante, e fica irritado porque ele não lhe responde e mostra-se arrependido e desanimado por ter confiado no seu “Estado”.
       - no fim dirige-se ao Diabo, mais humilde, pedindo-lhe que o deixe regressar à Terra para ir ter com a amante.

Caracterização da personagem:
      Direta - nobre (fidalgo de solar)
      Indireta - vaidoso, presunçoso do seu estado social
                   - o seu longo manto e o criado que carrega a cadeira representam bem a sua vaidade e ostentação
                   - a forma como reage perante o Diabo e o Anjo revelam a sua arrogância (de quem está habituado a mandar e a ter tudo)
                   - a sua conversa com o Diabo revela-nos que além da sua mulher tinha uma amante, mas que ambas o enganavam

Tipo(s) de cómico usado(s):
       de situação - quando trata o Diabo por Senhora
       de linguagem – utilização da ironia

Crítica de Gil Vicente nesta cena:
      - os nobres viviam como queriam (vida de luxúria)
      - os nobres pensavam que bastava rezar e ir à missa para ir para o Céu
      - características dadas às mulheres desse tempo: mentirosas; infiéis; falsas

 

ONZENEIRO
      Logo a seguir, vem um Onzeneiro que pergunta ao Diabo para onde vai aquela barca. O Diabo diz-lhe para entrar e pergunta-lhe o que o levou a demorar tanto. O Onzeneiro queixa-se de que morreu de forma imprevista, enquanto andava a recolher o dinheiro, e que nem dinheiro tinha para pagar ao barqueiro.
       Não querendo entrar na barca do Diabo, resolve dirigir-se à barca do Anjo, a quem pergunta se podia embarcar. O Anjo diz-lhe que não entraria naquela barca por ter sido ganancioso.
       De volta à barca do Diabo, o Onzeneiro pede para regressar ao mundo dos vivos para ir buscar dinheiro pois pensava que o Anjo não o teria deixado entrar pelo facto de o bolsão ir vazio.
O Onzeneiro acaba por entrar na barca do Inferno.

Tipo: Burguesia

Adereços que o caracterizam:
       - bolsão: representa a ganância pelo dinheiro


 Argumentos de Defesa:
Argumentos de acusação:
- ter morrido sem esperar
- não ter tido tempo de “apanhar” mais dinheiro (esta queixa mostra que para esta personagem o dinheiro era importante)
- jura ter o bolsão vazio
- precisa de ir à Terra para ir buscar mais dinheiro (para comprar o Paraíso) 
- Anjo: acusa-o de levar um bolsão cheio de dinheiro e o coração cheio de pecados, cheio de amor pelo dinheiro
- ser avarento 

 Momentos psicológicos da personagem:
       - ao princípio o Onzeneiro está confiante em como irá para o Paraíso, pois pensaria poder comprar a passagem
       - no fim dirige-se ao Diabo, pedindo-lhe que o deixe regressar à Terra para ir buscar dinheiro e finalmente reconhece os seus erros (“quem me cegou”)

Caracterização da personagem:
      Indireta – ganancioso, confiante da sua capacidade financeira

Tipo(s) de cómico usado(s):
       de situação - quando tenta utilizar o dinheiro para comprar a passagem
                          - quando não percebe o Anjo e pensa que este lhe está a exigir o dinheiro
       de linguagem – utilização da ironia

Crítica de Gil Vicente nesta cena:
      - havia quem pensasse que o dinheiro podia comprar e resolver tudo.

  

JOANNE, O PARVO
       Aproxima-se, agora, do cais um Parvo, que pergunta se aquela barca era a dos tolos. O Diabo afirmou que era aquela a sua barca. Entretanto, o Diabo perguntou-lhe de que é que ele tinha morrido. Nesse momento, o Parvo dirige uma série de insultos ao Diabo e tenta, de seguida, embarcar na barca da Glória. O Anjo disse-lhe que se ele quisesse, poderia entrar, pois durante a sua vida os erros que cometeu não foram por malícia. Contudo, teria entretanto de esperar fora da barca.


Tipo: Povo (uma pessoa pobre de espírito)

Adereços que o caracterizam:
       - não traz porque os símbolos cénicos estão relacionados com a vida terrena e os pecados cometidos e o Parvo não tem qualquer tipo de pecados.


 Argumentos de Defesa:
Argumentos de acusação:
- Anjo: - tudo o que fez foi sem maldade
            - é simples
Não há.

Momentos psicológicos da personagem:
       - apresenta-se ao Diabo com “Eu sou”
       - com simplicidade, ingenuidade e graça, autocaracteriza-se ao Diabo como “tolo”
       - queixa-se de ter morrido
       - as suas atitudes ao longo da cena são descontraídas, o que irrita o Diabo que o quer na sua barca
       - insulta o Diabo
       - apresenta-se ao Anjo com “Samica alguém” e este diz-lhe que entrará na sua barca, porque tudo o que fez foi sem maldade

Caracterização da personagem:
       Direta – “Samica alguém”
       Indireta – tolo, descarado

Tipo(s) de cómico usado(s):
       de situação - quando insulta o Diabo (inversão dos papéis)
       de caráter –o modo desbragado  do parvo
       de linguagem – utilização da ironia e do calão

Crítica de Gil Vicente nesta cena:
       - a importância das coisas simples: “Quem és tu? / Samica alguém”:

 
 Esta cena tem uma intenção lúdica, fazendo divertir quem está a assistir a esta peça, mas também tem uma intenção de crítica dizendo que as pessoas simples são mais merecedoras do Paraíso.
       O Parvo é convertido numa éspecie de comentador independente da acção, pondo à mostra, com os seus disparates, o ridículo das personagens convencidas do seu papel.
       Em Gil Vicente, a função do Parvo não é apresentar-se a si próprio, nunca sendo observado pelo interesse que em si mesmo possa oferecer, mas tem como função criar efeitos cómicos, irresponsáveis.
       Durante a peça do Auto da Barca do Inferno, interfere diversas vezes, sendo constante característica o uso do calão, que tanto é injurioso como otimista, fazendo de si um ser louco, completamente à parte, liberto de regras e constrangimentos, em que a ordem não exerce qualquer tipo de poder.
 
 

SAPATEIRO
       Um Sapateiro, com o seu avental e carregado de formas, é a personagem seguinte.
       Dirige-se à barca a do Diabo. Este fica espantado com a carga que o Sapateiro traz: pecados e formas.
       O Sapateiro diz ao Diabo que não entraria ali, pois enquanto viveu sempre se confessou, foi à missa e rezou pelos mortos. O Diabo desmascara-o e diz-lhe que não vale a pena continuar a utilizar aquele tipo de argumentos, acusando-o de praticar religião sem fé.
       O Sapateiro, incrédulo, dirige-se à barca da Glória, mas o Anjo diz-lhe que a carga que trazia não caberia na sua barca e que a do Inferno era o único destino para ele. Vendo que não conseguira o pretendido, o Sapateiro dirige-se à barca do Inferno, onde entra.

 Tipo: Povo (artesão)

        Adereços que o caracterizam:
       - avental: simboliza a profissão
       - carregado se formas de sapatos: simbolizam a sua profissão e vem carregado pelos seus pecados
 

 Argumentos de Defesa:
Argumentos de acusação:
- fez todas as práticas religiosas: rezava, ia à missa, adorava os santos e levava-lhes oferendas
- morreu confessado e comungado
 
do Diabo:
- Explorou o povo com o seu trabalho
- roubou o povo durante 30 anos
- ia à missa e logo a seguir ia roubar, ou seja, praticava a religião de forma incorrecta
- morreu excomungado
- calou dois mil enganos
do Anjo:
- Não viveu direito nem honestamente
- roubou o seu povo
- a cárrega embaraça-o, ou seja, o pecado impediu-o de se salvar

 Momentos psicológicos da personagem:
        - ao princípio está confiante em como irá para o Paraíso, pois era bastante religioso
        - no fim dirige-se ao Diabo e reconhece os seus erros

Caracterização da personagem:
       - Direta: aldrabão, ladrão, desonesto, malcriado
       - Indireta: pecador, excomungado, autoconfiante , explorador

Tipo(s) de cómico usado(s):
       - Cómico de linguagem: "quatro formigas cagadas que podem bem ir i chantadas." (calão)

Crítica de Gil Vicente nesta cena:
       Forma superficial de como os católicos praticavam a religião (julgavam que as rezas, missas, comunhões, tinham mais valor que praticar o bem)

 

FRADE
       Um Frade entra em cena acompanhado de uma moça, trazendo numa mão um pequeno escudo e uma espada na outra, um capacete debaixo do capuz, a cantarolar uma música e a dançar. Diz ao Diabo ser da corte. O Diabo não lhe prestou qualquer atenção e perguntou-lhe se a moça que ele trazia era sua e se no convento não o censuravam por isso. O Frade respondeu-lhe que no convento todos eram tão pecadores quanto ele, mas ao tomar consciência do rumo daquela barca tenta entender as razões que o encaminhavam para o Inferno e não para o céu, já que era um frade. O Diabo diz-lhe que o comportamento evidenciado durante toda a vida abrira caminho para esta paragem.
          O Frade não se conforma e resolve, juntamente com a moça, ir ao batel do Céu, encontram-se com o Parvo, que os convence do seu destino: o inferno.
         O Frade dirigiu-se, de novo à barca do Inferno e aí embarca com a moça que o acompanhava.

Tipo: Clero (mundano)

       Adereços que o caracterizam:
       Amante (Florença) – Não cumpre o celibato
       Espada, escudo, casco – Guerra;
       Hábito de frade, cruz – Religião e fé.
       Cantiga cortesã – Vida cortesã


 Argumentos de Defesa:
Argumentos de acusação:
- ser Frade
- rezou muito
- ser cortesão
- saber lutar 
- era mundano
- não respeitou os votos de castidade e de pobreza
O Frade não nega as acusações feitas, pois pensa que o facto de ser Frade e o seu hábito o vão salvar dos seus pecados

Momentos psicológicos da personagem:
       - Apresenta-se como cortesão, o que revela que ele frequentava a corte e os seus prazeres (era um frade mundano)
       - Usa o facto de ser Frade naquele tempo (pretende mostrar que o clero se mostrava superior, poderia fazer o que quisesse sem ser condenado)
       - aceita a sentença porque se o Anjo se recusa a falar com ele é porque todos os seus pecados foram graves
 
Caracterização
     Direta - O Frade autocaracteriza-se como “cortesão”, ou seja, alguém que está familiarizado com os hábitos da corte. Mais tarde, assume-se como “namorado” e “dado a virtude” e que tem “tanto salmo rezado”.
      Assim, desde logo esta personagem assume, de forma direta, uma vida dupla como frade, que usa hábito e reza orações e que também é da corte, que namora, canta, esgrima e toca viola.
      Indireta - As suas atitudes, também certificam que é um padre pecador, que levava uma vida boémia, em vez de se dedicar afincadamente ao serviço que prestava a Deus e em auxílio de quem precisasse.
      Mostra que é obstinado quando se nega a entrar na Barca do Inferno, convencido de que as suas rezas e o simples hábito de Frade lhe garantirão um outro destino. Do mesmo modo, também não aceita que Florença entre nessa barca, o que pode denunciar que o Frade não estava ainda consciente de ter vivido uma vida de pecado.

Tipo(s) de cómico usado(s):
       de linguagem - “Devoto padre marido”;
       de situação - a entrada do frade em cena com a moça pela mão
       de carácter - pensava que a relação proibida com a moça seria perdoada pelas suas muitas rezas.

 Intencionalidade do nome dado por Gil Vicente à companheira do Frade:
A intencionalidade do nome dado por Gil Vicente à companheira do Frade (Florença), é que Florença representa uma cidade italiana considerada o berço do Renascimento; além disso essa cidade foi governada pela família Médici, protectora dos judeus, iniciando uma longa relação da família com a comunidade judaica, que se tornaria comprometedora com a inquisição.

 Crítica de Gil Vicente nesta cena:
       - desajuste entre a vida religiosa e a vida que ele levava ( vida mundana)
       - os símbolos representavam a vida de prazeres que ele levava, o que o afastava do seu dever à crítica religiosa

        -  “Diabo-(...) E não os punham lá grosa / no vosso convento santo?
        - Frade- E eles faziam outro tanto!”      revela que:
                               - havia uma quebra de votos de castidade ao hábito comum entre eles
                               - esta afirmação alarga a crítica a toda a classe social, pois o Frade é uma personagem tipo, representando toda uma classe social

  

ALCOVITEIRA
       A Alcoviteira, Brízida Vaz, chega ao cais relatando o que trazia e afirmando que iria para o Paraíso pois tinha sofrido em vida e feito muito pelas moças, mas o Diabo contestava e dizia-lhe que aquela barca era a que lhe estava destinada.
       Brízida vai implorar ao Anjo que a deixe entrar na sua barca, pois ela não queria arder no fogo do inferno, dizendo que tinha o mesmo mérito que o de um apóstolo. O Anjo disse-lhe que se fosse embora e que não o importunasse mais.
       Triste por não poder ir para o Paraíso, Brízida vai caminhando em direcção ao batel do Inferno onde entra, já que era o único meio possível para seguir a sua viagem.

Tipo: Povo (alcoviteira)
 

       Adereços que a caracterizam:
       - seiscentos virgos postiços (hímenes das virgens)
       - três arcas de feitiços
       - três armários de mentir
       - joias de vestir
       - guarda-roupa
       - casa movediça
       - estrado de cortiça
       - dois coxins
(todos estes símbolos representavam a sua atividade de alcoviteira ligada à prostituição)
 

 Argumentos de Defesa:
Argumentos de acusação:
- diz que já sofreu muito (era uma mártir, levou açoites)
- que arranjou muitas “meninas” para elementos do clero
- levava bofé;   era perfeita como os apóstolos e anjos e fez coisas muito divinas; salvou todas as suas meninas
- viveu uma má vida (prostituição)
- a hipocrisia
 

 Momentos psicológicos da personagem:
        - chegando ao cais na barca do Inferno, recusa-se a entrar sem o Fidalgo, provavelmente eram conhecidos
        - diz que não é a barca do Diabo que procura
        - está sempre confiante de que vai entrar na barca do Anjo
        - defende-se dizendo que sofreu muito, como ninguém, que arranjou muitas “meninas” para elementos do clero e que está orgulhosa por ter arranjado “dono” para todas as suas “meninas”
        - quando vai à barca do Anjo muda completamente a sua atitude, usando mais o vocabulário de cariz religioso e tentando seduzir o Anjo e fazer-se de boa pessoa

 Caracterização:
      Direta - "som apostolada, angelada e martelada"      
      Indireta - Brísida era mentirosa (“três almários de mentir”), mexeriqueira (“cinco cofres de enleos”), ladra (“alguns frutos alheos”), cínica (“trago eu muita bofé”), convencida (“e eu vou pera o paraíso”), enganadora (“barqueiro mano meus olhos”).
 
      Tipo(s) de cómico usado(s):
      de linguagem - "barqueiro mano, meus olhos"; "cuidais que trago piolhos?"
      de carácter - "eu som apostolada...fiz cousas mui divinas".

 Crítica de Gil Vicente nesta cena:
       Crítica individualizada ou crítica de outros sectores da sociedade: - Gil Vicente faz crítica às alcoviteiras. Critica as outras classes, nomeadamente o Clero.

 

JUDEU
       Logo após o embarque de Brísida Vaz, vem um Judeu, carregando um bode (fazia parte dos rituais de sacrifício da religião hebraica).
       Chegado ao batel dos danados, chama o marinheiro e pergunta-lhe a quem pertence aquela barca. O Diabo questiona se o bode também era para entrar junto com o Judeu, que afirma que sim, mas o Diabo impede essa entrada, pois ele não levava caprinos para o Inferno.
       O Judeu resolve pagar alguns tostões ao Diabo, para que ele permita a entrada do bode. Vendo que não consegue, roga-lhe várias pragas, apenas pelo facto do Diabo não fazer a sua vontade.
      O Parvo, para troçar do Judeu, perguntou se ele tinha roubado a cabra.
        Em nenhum momento, o Judeu tenta entrar na barca do Anjo.
        O Diabo ordena o fim daquela discussão e ordena ao Judeu que entre.

Tipo: Judeu

Percurso cénico:
      O Judeu tenta entrar na Barca do Inferno mas não consegue. O Diabo acaba por permitir que se desloque a reboque na Barca do Inferno.

Adereços que o caracterizam:
      Bode – salvação dos pecados, purificação, o que explica o apego do Judeu ao seu símbolo, mesmo depois da morte. (Símbolo da religião judaica).


Argumentos de Defesa:
Argumentos de acusação:
- Não tem argumentos de defesa pois como é judeu não crê na religião católica e não acredita que possa ter salvação.
De acusação do Diabo e do Parvo:
- Violação de sepulturas cristãs;
- Consumo de carne em dias de jejum.

Momentos psicológicos da personagem:
      Logo que chega ao cais o Judeu dirige-se para a barca do Inferno porque:
      - sabe que não será aceite na barca do Anjo, já que em vida nunca foi aceite nos lugares dos Cristãos
      - os Judeus eram muito mal vistos na época e nem poderia admitir a hipótese de entrar na barca do Anjo
      Para entrar na Barca do Inferno ele usa o dinheiro. Ele usa o dinheiro porque era uma forma de mostrar que os Judeus tinham grande poder económico e que estavam ligados ao dinheiro.

O Judeu recusa deixar o bode em terra, porque quer ser reconhecido como Judeu

Caracterização:
       Indirecta – fanatismo religioso (não queria largar o bode), ladrão, má pessoa, avarento.

Tipo(s) de cómico usado(s):
       de linguagem - utiliza o registo de língua popular nos insultos ao parvo e ao Diabo
       de carácter -  o seu apego ao bode
       de situação - aparece com o bode às costas e termina a reboque da Barca do Inferno

Crítica de Gil Vicente nesta cena:
        Em termos de contexto histórico,
       - revela que os Cristãos odiavam os Judeus
       - acusavam-nos de enriquecer à custa de roubos de Natureza diversa
       - acusavam-nos de ofender a religião católica, cometendo diversas profanações

 

CORREGEDOR
        Depois do Judeu ter embarcado, veio um Corregedor, carregado de feitos. Quando chegou ao batel do Inferno, com sua vara na mão, chamou o barqueiro, pensando ser servido. O barqueiro, ao vê-lo, fica feliz, pois esta seria mais uma alma que ele conduziria para o fogo ardente do Inferno.
        O Corregedor era um dos eleitos para a sua barca, porque durante toda a sua vida foi um juiz corrupto, que aceitava perdizes como suborno. O Diabo começa a falar em latim com o Corregedor, pois era usado pela Justiça e pela Igreja, e era considerada uma língua culta. Os dois começam a discutir em latim, o Corregedor por se achar superior ao Diabo quer também demonstrar-lhe que, pelo facto de ser um juiz prestigiado, não poderia entrar em tal barca. O Diabo vai perguntando sobre todas as suas falcatruas, cita, inclusive, a sua mulher, que aceitava suborno dos judeus, mas o Corregedor garantiu que nisso ele não estava envolvido, esses eram os pecados de sua mulher e não os seus.

 Tipo: Juiz corrupto

Adereços que o caracterizam:
      Vara e processos (julgamentos mal efectuados, parcialidade)
 
     PROCURADOR
       Enquanto o Corregedor estava nesta conversa com o Arrais do Inferno, chegou um Procurador, carregando vários livros. Depara-se com o Corregedor e, espantado por encontrá-lo ali, questiona-o para onde ia, mas o Diabo responde pelo Corregedor e diz: para o Inferno e que também era bom ele ir entrando logo.






Tipo:Funcionário da Coroa corrupto

 Adereços que o caracterizam:
        Livros jurídicos - os processos judiciais representavam a injustiça, o suborno, a corrupção


        O Corregedor e o Procurador não queriam entrar na barca, pois diziam-se homens de fé, sabedores da existência de outra barca em melhores condições que os conduziria para um lugar mais ameno - o Céu.
       Quando chegam ao batel divino, o Anjo e o Parvo mostram-lhes que as suas ações os impediam de entrar na barca da Glória, pois tinham feito mal e era agora altura de pagar, com a ida das suas almas para o Inferno.
        Desistindo de ir para o paraíso, os dois entram no batel dos condenados e deparam-se com Brísida Vaz, que fica satisfeita com esta entrada, pois enquanto viveu foi muito castigada pela Justiça.

Gil Vicente julgou em simultâneo o Corregedor e o Procurador porque:
      - ambos faziam parte da justiça (havia cumplicidade entre a justiça e os assuntos do Rei)
      - ambos eram corruptos)
      A confissão para eles:
       - não era importante: só se confessavam em situações de risco e não diziam a verdade

 Corregedor:


Argumentos de Defesa:
Argumentos de acusação:
 
- não tem ar de quem se deixa subornar
- apenas o rei tem mais poder que ele (utilização do seu estatuto social)
- era a sua mulher que aceitava os subornos
 
 
A principal e quase única acusação que o Diabo lança ao Corregedor é a de não ter sido imparcial nas suas sentenças,deixando-se corromper por dádivas recebidas até de Judeus
- julgou com malícia (enriqueceu com o trabalho dos lavradores ingénuos)
- confessou-se mas mentiu
O Anjo acusa-o
- de vir carregado, sendo filho da ciência
O Parvo acusa-o de:
- roubar coelhos e perdizes
- profanar nos campanários: levava a religião de uma forma superficial
- de vir carregado, sendo filho da ciência

Procurador:


Argumentos de Defesa:
Argumentos de acusação:
- não tem tempo de se confessar
 
O Anjo acusa-o
- de vir carregado, sendo filho da ciência
O Parvo acusa-o de:
- roubar coelhos e perdizes
- profanar nos campanários: levava a religião de uma forma superficial

Momentos psicológicos das personagens:
      A forma de como o Corregedor inicia diálogo com o Diabo aproxima-se da forma com o Fidalgo também o fez, isto é, utilizando o estatuto social.
     O Corregedor usa muito o Latim porque é uma língua muito usada em direito e o Diabo responde-lhe em Latim Macarrónico para mostrar que essa linguagem não servia de nada, que poderiam sobre falar bem Latim mas não sabiam aplicar as leis.
     O Corregedor pergunta se o poder do barqueiro infernal é maior do que o do próprio Rei porque ele na Terra tinha um grande poder e não admitia que mandassem nele.
     Quando o Corregedor e o Procurador se aproximam do Anjo, ele fica irritado e roga-lhes uma praga (atitude nada normal do Anjo).
      No Inferno o Corregedor dialoga com Brízida Vaz porque já se conheceriam da vida terrena.

Caracterização:
       Indirecta – a referência às perdizes aludia ao carácter corrupto das personagens.

 Tipo(s) de cómico usado(s):
       de linguagemutilização do latim macarrónico (O Corregedor usa muito o Latim porque era uma língua muito usada em Direito)
       de carácter -  a sua mania de superioridade

Crítica de Gil Vicente nesta cena:
      Denúncia da justiça corrompida que se deixava comprar e espoliava o que podia.
      Gil Vicente contrapõe a justiça humana, corrupta, à justiça divina, que repõe a verdade, sendo intransigente e imparcial. O juiz do tribunal terreno torna-se réu no tribunal divino.
      A forma como é praticada a religião revela hipocrisia, falsidade e interesse.

 

ENFORCADO
         Após a entrada destes dois oficiais da justiça vem um homem que morreu enforcado que, ao chegar ao batel dos mal-aventurados, começou a conversar com o Diabo. Tentou explicar que não iria no batel do Inferno, pois já tinha sido perdoado por Deus ao morrer enforcado acreditando no que lhe dissera Garcia Moniz). O Diabo diz-lhe que está enganado e predestinado a arder no fogo infernal.
        Desistindo de tentar fugir ao seu destino, acaba por obedecer às ordens do Diabo para ajudar a empurrar a barca e a remar, pois o momento da partida aproximava-se.
 
Tipo: Povo (criminoso condenado)

   Adereços que o caracterizam:
         O único símbolo cénico é o baraço (ou corda), que simboliza o suicídio.


Argumentos de Defesa:
Argumentos de acusação:
- ele havia sido perdoado por Deus ao morrer enforcado (assim lho dissera Garcia Moniz)
- já tinha sofrido o castigo na prisão 
- o crime que cometeu
- ser ingénuo
 
 
      Momentos psicológicos da personagem:
      - confiança na palavra de Garcia Moniz, purgatório era o Limoeiro, o baraço era santo, as orações feitas no momento de execução

Caracterização:
       Direta: - “ Bem-aventurado”.
       Indirecta: -ingénuo,confiante na palavra dos outros,facilmente influenciável.

Tipo(s) de cómico usado(s):
       de carácter -  a ingenuidade da personagem (que contrasta com o facto de ele ser um ladrão)

      Crítica de Gil Vicente nesta cena:
     Os costumes censurados são o engano dos mais fracos por pessoas com responsabilidade (Garcia Gil, Mestre da Balança da Moeda de Lisboa); a doutrina, ou seja, o sistema.
      A intenção critica de Gil Vicente: ao escolher esta personagem Gil Vicente foi denunciar as falsas doutrinas que invertem os valores da conduta social.

 

QUATRO CAVALEIROS
        Depois disso, vieram quatro Cavaleiros cantando, cada um trazia a Cruz de Cristo, para demonstrar a sua fé, pois tinham lutado numa Cruzada contra os Muçulmanos, no norte da África.
       Ao passarem na frente da barca do Inferno, cantando, segurando as suas espadas e escudos, o Diabo não resiste e diz-lhes para entrarem, mas um deles responde-lhe que quem morre por Jesus Cristo não entra em tal barca.
        Tornaram a prosseguir, cantarolando, em direcção à barca da Glória, sendo muito bem recebidos pelo Anjo que já estava à sua espera há muito tempo
        Sendo assim, os quatro Cavaleiros embarcaram para o Paraíso, já que morreram pela expansão da fé e por isso estavam isentos de qualquer pecado.

 Tipo:  Cruzados

Adereços que os caracterizam:
      Cruz de Cristo que simboliza a fé católica dos cavaleiros, as espadas e os escudos, que simbolizam a apologia da Reconquista e da Expansão da Fé Cristã
 

Argumentos de Defesa:
Argumentos de acusação:
- dizem que morreram a lutar contra os mouros em nome de Cristo
 
Não há. 

Os cavaleiros não foram acusados pelo Diabo porque:
         - merecem entrar na barca do Anjo
         - morreram a lutar pela fé cristã, contra os infiéis, o que os livrou de todos os pecados
         - esta cena revela a mentalidade medieval de defesa do espírito da cruzada
 
 Momentos psicológicos da personagem:
          Quando chegam ao cais chegam a cantar. Essa cantiga mostra aos mortais que esta vida é uma passagem e que terão de passar sempre naquele cais onde serão julgados.

           Nessa cantiga está contida a moralidade da peça porque:
        - fala da transitoriadade da vida
        - fala da inavitabilidade do destino final
        - fala do destino final que está de acordo com aquilo que foi feito na vida Terrena

 
Caracterização:
       Ao contrário do que acontece com as outras personagens, nada nos é dito sobre a sua vida ou morte, a não ser “morremos nas Partes de Além[…] pelejando por Cristo” .

 Crítica de Gil Vicente nesta cena:
        Na cantiga cantada pelos quatro Cavaleiros está condensada a moralidade da peça, reflexo da ideia que a Igreja tinha sobre a vida e o mundo.
        Gil Vicente pretende transmitir que quem faz o bem na Terra e espalhou a fé cristã é recompensado no Céu e quem acredita em Deus, quando morrer terá uma “vida” calma e tranquila.
      
A moralidade está condensada nos seguintes versos: “Vigiai – vos, pescadores, que depois da sepultura neste rio está a ventura de prazeres ou dolores. Gil Vicente com estes versos, pretendia transmitir que depois da '' vida terrestre '', cada pessoa era recompensada ou '' amaldiçoada '' conforme a sua vida na terra.


CLASSIFICAÇÃO DA OBRA
A obra é um auto de moralidade, porque revela os vícios, os defeitos e os costumes da época de Quinhentos, criticando-os de modo a moralizar a sociedade.
 
ASSUNTO
O auto apresenta a dualidade BEM / MAL, simbolizada pelas personagens alegóricas, ANJO e DIABO, as quais se encontram na respectiva barca, atracada no cais. Aqui surgem várias almas que, através do diálogo com o Anjo e/ou o Diabo, expõem a sua vida, carregada de vícios, o que as leva à condenação.
 
SIMBOLOGIA DO CENÁRIO:
·    Cais - representa o tribunal no qual somos julgados segundo o nosso comportamento enquanto vivos.
 
·         Barcas - simbolizam a partida para o outro mundo;
 
·         Rio - simboliza a divisão e a transição entre este mundo e o outro.
 
PERSONAGENS
 
Alegóricas- Anjo / Diabo:
 
Semelhanças
Diferenças
- São personagens alegóricas;
- Nenhum tenta recuperar as personagens que entram em cena;
- Ambos avaliam o tipo de vida das personagens, realçando os aspectos negativos (na generalidade);
- Ambos têm uma única função: condenar (Diabo) ou salvar (Anjo).
     Diabo: espera um grande número de passageiros, por isso enfeita a barca:
- “Põe bandeiras, que é festa”;
     Anjo: Confiante de que não terá muita  gente:
     - “(…) veremos se vem alguém/ merecedor de tal bem (…);
 
     Diabo: linguagem irónica, zombeteira, crítica, agressiva;
  Anjo: sóbrio na linguagem e nos gestos;
 
     Diabo: Lembra às personagens que o destino já se encontra traçado, referindo os seus vícios;
  Anjo: o julgamento é definitivo.
 
Personagens-tipo:
 
Semelhanças
Diferenças
 - Grande apego aos bens materiais e ao  seu  tipo de  vida (excepções:Parvo, Cavaleiros);
 - Não  existe um  arrependimento real, embora, por vezes, haja uma tomada de consciência do erro;
- Visão deturpada da religião;
  - Fazem-se acompanhar de símbolos cénicos (excepção: Parvo).
- Percurso cénico;
- Representatividade dos símbolos.
    
 
 
TEMPO:
Situando-se num plano extra terreno, a acção não apresenta uma evolução cronológica.
 
 
CRÍTICA:
Nesta peça, Gil Vicente denuncia os vícios da sociedade portuguesa quinhentista, segundo o lema latino ridendo castigat mores, isto é, a rir se corrigem os costumes.
 
 
Assim, são criticados:
 
·
A falsa prática religiosa;
·
A vaidade;
·
A corrupção da justiça;
·
Desregramento sexual;
·
O judaísmo;
·
A ostentação;
·
A exploração;
·
Desprezo pelos humildes;
·
A tirania,
·    A ignorância e a credulidade;
·
A ganância;
·
A frivolidade.
 
 
ESTRUTURA EXTERNA:
Os textos dramáticos organizam-se, habitualmente, em actos que contêm diversas cenas. Tal não acontece no Auto da Barca do Inferno, embora não seja difícil dividir em cenas esta peça de Gil Vicente.
A   peça é constituída por oitavas, com versos em redondilha maior, seguindo o esquema rimático abbaacca.
 
 
ESTRUTURA INTERNA:
Cada cena, excepto a inicial, apresenta as três partes clássicas:
 
·         Exposição: breve apresentação da personagem;
 
·         Conflito: interrogatório feito pelo Diabo e pelo Anjo;
 
·         Desenlace: atribuição da sentença.
 
 
O CÓMICO:
Cómico de carácter:
 
·         A loucura de Joane e a inconsciência dos seus actos e das suas palavras.
 
·         Um frade dançarino e enamorado (desajuste entre o que a personagem deveria ser e a realidade)
Cómico de linguagem:
 
·         Uso do calão
 
·         Frases desconexas proferidas por Joane
 
·         As respostas absurdas de Joane
 
·         Ironia
 
·         Latim macarrónico
 
·         Falas de Brísida Vaz
Cómico de situação:
 
·         O Fidalgo que entra em cena presunçoso e seguro da sua salvação
 
·         Surpresa do Onzeneiro ao ver o Fidalgo na Barca do Inferno
 
·         Um frade que canta, dança e se faz acompanhar de uma moça
 
·         Lição de esgrima que o Frade dá ao Diabo
 
·         Encontro do Corregedor com Brísida Vaz na Barca do Inferno
 
 
LINGUAGEM:
A linguagem apresenta-se como um meio caracterizador das personagens, dos estatutos, das profissões, dos vícios, dos destinos, etc.
Assim, Joane utiliza uma linguagem indecorosa, injuriosa, rude e agressiva; a do Sapateiro é desbragada e rude, registando-se a presença de alguns tecnicismos (“badana”, “cordovão”, etc.); o interesse que o Frade demonstra pela esgrima está patente nos termos técnicos a que recorre com frequência; a Alcoviteira apresenta uma linguagem ambígua e deturpada, invertendo o sentido das palavras que se encontram nos textos religiosos; o Judeu recorre ao calão; o Corregedor usa o latim.
 
A linguagem transmite ainda o tom irónico e gozador do Diabo, contrapondo-o ao ar calmo e sério do Anjo.
 
Como recursos estilísticos, há que realçar a ironia, o eufemismo e o recurso a trocadilhos.
 
Aspetos medievais e renascentistas da obra:

Aspetos Medievais
Aspectos Renascentistas
· Inexistência de uma Divisão externa (actos e cenas) da peça;
· Uso da redondilha maior;
· Conceção religiosa da vida humana (ideia do Juízo Final).
· Existência  de  uma  exposição,  de um conflito e de um desenlace;
· Dimensão crítica da peça.
 
 


Personagem
Signo Não Verbal
Simbologia
Acusação
Defesa

FIDALGO

a cadeira, o manto e o moço
Sobranceria e tirania, Fidalgo representa quantos na Corte e no Reino exploravam e sacrificavam o povo humilde.

Diabo

+chama “poderoso” no sentido de pessoa de elevada categoria social que zomba de tudo
+ viveu a seu belo prazer
+ também o seu pai está no Inferno
+ Deixa na outra vida quem reze sempre por ele
+ é fidalgo de solar, de ascendência nobre
+ quer tornar à outra vida para ver a dama querida (amante)
+ quer tornar à outra vida para ver a mulher que se quer matar por desgosto

Anjo

+ chama de tirano, vaidoso
 + acusa de arrogante, opressor dos pobres a quem despreza

ONZENEIRO

saco das moedas
avareza e da exploração

Diabo

+chama “parente”
+ insinua o abuso na utilização do dinheiro
+ faleceu há pouco tempo, quer procurar outro batel
+ quer tornar ao outro mundo para buscar mais dinheiro, (compreendeu que o Anjo assim o exigira)

Anjo

+ o bolsão ocupa todo o navio (a avareza entrara no fundo do coração)

PARVO (JOANE)

Invoca-se a verdade do Evangelho: «Bem aventurados os pobres de espírito, porque deles é o Reino dos Céus». O Parvo aparece como acusador das faltas cometidas por quem, tendo juízo perfeito, se esqueceu das boas normas da justiça e da verdade.
 Anjo -  Em tudo o que fez, agiu sem malícia

SAPATEIRO

as formas dos sapatos e o avental
ganância, falta de solidariedade do Sapateiro para com os outros elementos do povo e não arrependimento dos seus pecados

Diabo

+ faz notar a carga que ele traz
+ morreu excomungado
+ roubou, durante trinta anos, o povo com o seu ofício
+ ouvia missas, mas depois roubava
+ explorou os seus clientes
+ morreu confessado
+ ouviu muitas missas
+ fazia dádivas aos santos e mandava rezar pelos finados

Anjo

+ a carga embaraça-o

+ roubava descaradamente (“rouba de praça”)

FRADE

Moça, broquel, espada e casco
corrupção moral  vida cortesã, vive contra as regras de celibato, sendo ainda um espadachim e bailarino de respeito

 

Diabo

+faz notar a presença da moça
+ não temeu o Inferno enquanto vivia
+ chama-o de “gentil padre mundanal”, de “devoto padre marido”
+ faz notar os dotes de espadachim do frade
+ o hábito
+ invoca o facto de ser um padre namorado e dado a virtude
+ rezou muitos salmos

Parvo

+faz notar a presença da moça

 

ALCOVITEIRA

Utensílios para o desempenho da sua profissão
o proxenetismo e a imoralidade

Diabo

+apenas a convida
+ é uma mártir
+ foi por várias vezes espancada
+ criava  e convertia as meninas para ...

Anjo

+ recusa qualquer conversa

JUDEU

Bode
 
diferença entre a sua religião e a religião cristã

Diabo

+não encontra pecados
+ não apresenta argumentos, tentando apenas comprar a passagem para si e para o seu bode, na Barca do Inferno

Parvo

+ comia carne nos dias proibidos pela Igreja e praticava, sem vergonha,  outros actos contrários à religião cristã.

CORREGEDOR

Feitos
(processos judiciais )
 
 
 
 
Responsáveis pela justiça, simbolizam precisamente o comtrário e ainda a extorsão

Diabo

+chama “amador de perdiz” (corrupto) e descorregedor
+ aceitou roubos (foi corrupto)
+ a mulher apresentava-se com presentes dos judeus
+ sugou o sangue dos ingénuos lavradores
+ invoca o seu estatuto de corregedor / juíz
+ só aceita ser julgado por um poder maior (rei)
+ invoca o nome de Deus
+ afirma sempre ter agido com justiça e imparcialidade
+ os pecados são de sua mulher

Anjo

+ para filho da ciência, do rigor, vem muito carregado
+ é corrupto

PROCURADOR

Livros

Diabo

+ apenas o convida
+ quer um barco condizente com o seu estatuto
+ nunca pensou que iria morrer tão cedo, pelo que não se confessou

Anjo

+ para filho da ciência, do rigor, vem muito carregado
+ é corrupto

ENFORCADO

O baraço que traz ao pescoço
À luz da igreja só Deus poder tirar a vida a um ser humano

Diabo

+ não faz grandes acusações, pois o maior crime que terá cometido terá sido o suicídio
+ pensava que morrendo enforcado ficaria santo e os seus delitos perdoados
+ O peso da opinião de Garcia Moniz na sua conduta.

Quatro Cavaleiros

Cruz
“quem morre em tal peleja merece paz eterna.”

Diabo

+ mostra-se surpreendido
+ “quem morre por Jesus merece o Paraíso2

Anjo

+ “quem morre em tal peleja merece paz eterna.”